quinta-feira, 19 de novembro de 2020

Desalojada

Soube por interpostas e pouco fidedignas fontes que tinhas outra. Outra mulher. Sempre o soube. Ou assim pensava. Quatro meses depois da nossa separação e já refizeste a tua vida. Com outra mulher. A distancia dos meses não foi suficiente para não me abalar. Abriu, sem licença e num rompante la estava a dor rasgando sem esforço a capa fina da indiferença. Fiquei nua. O veneno gelado da verdade, escorreu para as pernas, deixando as bambas e dormentes. Tombei. De joelhos no chão, senti voltar ás minhas costas, a pesada mochila das nossas vivencias. Atras de mim, no passado e no entanto tao aflitivamente vívido. O peito apertado num abraço de dois troncos toscos, vigorosos e sem empatia, sugavam me o ar. Tombei. A mochila soltou se, os troncos afrouxaram, deixando me abraçada a mim mesma. Pequena pedra rude, arremessada por languida apatia, encolhida no descampado.


 

terça-feira, 16 de junho de 2020

Queira o destino....


                                                                                                     
                                                                                                       
           
                                                                                                                   Não acredito em destino.
Neoplasia da mama.
Como vocábulos pronunciados num ritual de magia, fui lançada para uma nova dimensão onde não existe som e não existe gravidade. Não conseguia mais distinguir qualquer ruido e quando me tentei levantar, cambaleava sem controlo dos movimentos. Não foram as vivencias de 30 anos, passadas em vislumbre de segundos, mas antes o afligimento dos afazeres do presente, que bombeavam em todo o meu ser.
Não podia ficar doente!
Iria perder o emprego quando começasse a ausentar me e consequentemente parar o progresso que tinha finalmente iniciado e a tao ambicionada estabilidade para os meus filhos.
Filhos.
Palavra- chave para o inico de mais uma viajem na dimensão desconhecida, que agora se revelava também sem luz e sem tempo.
Não conseguia respirar e não me conseguia mover.
Na minha perturbada mente surgiram imagens em movimento.
O primeiro dia de aulas do meu filho mais velho, tao próxima e tao impossível.
As gémeas iam passar para o quarto delas e já tinham a colecção de historias e as musicas de embalar. As suas carinhas de divertimento ou de assombro não seriam para meu deleite.
Só eu sei contar as histórias!
Como será o meu menino quando for alto e barbado e mesmo assim precisar de um colo?
E os sweet sixteens das minhas princesas gémeas e os seus corações arrebatados?
Os joelhos fraquejaram e eu tombei por terra, sob o peso da minha perda. Tinha me sido dada a maior graça e em meio a minha felicidade seria me retirado.
Não vou sucumbir á dolência da vã existência.
Não vou ser habitante nessa dimensão de medo e perda do futuro.
Não vou buscar aconchego á convicção de injustiça nem me sentar no colo da vitimização que traz a certeza dum castigo do destino.
Mudarei o destino

quinta-feira, 23 de abril de 2020

Perda...


- É para jogar no euromilhões e um Chesterfield.
- Boa sorte!
- Espero, encontrar a sorte aqui de férias no Algarve comigo.
Um sorriso de esperança espontânea aflorou aos lábios, com o feliz pensamento, enquanto de cabeça baixa desenrolava o plástico do maço de cigarros num gesto automático de tao repetido.
Empurrei a barreira para entrar na zona comercial. A abstracção dos gestos e do pensamento fez me  bater com a barreira na pessoa da frente, que de imediato se virou em busca do agressor passivo.
O espontâneo e solto “desculpe” emudeceu na garganta, estrangulado pelo assombro.
Era a ultima pessoa que esperava encontrar ali. 20 anos depois. Como era fácil e magico ver o menino irmão das vivências do lar, por debaixo deste corpo de homem. 20 anos depois. O desenrolar do passado exibe se numa velocidade de pancada na cabeça. Pela hesitação do estender da mão, percebo que a perturbação do momento é partilhada. Num impulso, as mãos esticam se e unem se num reatar do tempo perdido.
A força do aperto, o calor da afeição e o tao desejado abraço, escorreram as angustiosas e já nublosas divergências.
Ancorados pelas mãos nos ombros, o sorriso rasgou se, a lagrima correu e a palavra soltou se.
Tanto para perguntar, tanto para saber, que as palavras e as vozes se atropelavam, na sôfrega ânsia.
Por entre os olhos húmidos percebo que o seu sorriso afrouxa, e o menino magoado do passado retorna. Viro a cabeça para perceber o que ele olha.
Sim. A luz das lâmpadas salientam o brilho loiro da sua longa cabeleira que encima um sensual e torneado corpo de mulher. Continua linda.  A minha mulher. No que apareceu uma eternidade ficamos os três parados e mudos, até que ele se foi.
Agora como há 20 anos.

quinta-feira, 9 de abril de 2020

Recomeçar.....


Perdi a oportunidade de ser feliz! Com esta simples frase carreguei os teus ombros do entulho das minhas fátuas expectativas. Nunca soube bem o que queria, nem se realmente te queria. Mas não vou perder a oportunidade de polir a responsabilidade com a tua culpa. Acabamos. Sim, acabamos o enredo amoroso. Um tango argentino que nenhum dos dois dominava, mas que nos excitava no seu languido jogo de compassos entre arrastados e velozes. Olhos nos olhos, movimentos sincronizados na embriagues do romance. Tan tan. Os últimos acordes. Disfarçar os movimentos desajeitados no silêncio constrangedor, enquanto o olhar vexado, vasculha a imaginária cortina corrida de fim de cena, para encobrir a humilhante actuação de entrega. Capitaneados pela fragrância nublosa e anestesiante do remorso da falsa entrega, do inserto querer, da hipócrita e apressada certeza, navegamos a separação, esgrimindo culpas.
Quero entristecer te, mas não sei o que te faz rir. Quero inquietar o teu dia, mas não sei o que te dá a paz. Perturbador vazio morno, este que se instala ao som da tua gargalhada na minha memória e me agonia na mareada busca mental da causa de tão genuína moldura.
Perdi a oportunidade, sim, mas a de ter ver de verdade.
Desconheço este condimento agridoce, estacionado no fundo da garganta que impulsiona, a doce medo, o desejo de não te perder.
E então instala se confortavelmente a inquietude do gostar.

terça-feira, 7 de abril de 2020

Renascer

 - Avô, achas que quando for grande vou ser como tu?

Sem desviar o olhar dos molhos de lenha que empilhava, estreitou os enrugados lábios e suspirou ao vestir o passado que se colou ao corpo cansando-o ainda mais.
- Se Deus quiser hás-de ser doutor.
Porque diacho, haveria o raio do cachopo querer ser um castigado lavrador?
Franziu a ampla testa enrugada, de pele grossa de tantos invernos. Olhou de soslaio o garoto.
Bochechas rosadas de saúde e geada. Boca rasgada da infantil curiosidade. Olhos mareados de candura.
 Admiração!
O velho corpo tremeu e não foi do vento norte. Não foi a neve de Janeiro que cravou o bafo de morte nos ossos da velha carcaça.
Caraças, o diacho do cachopo bulia lhe com as entranhas.
- Avô, tu também és doutor?
A inocência que pulou espontânea da boca do menino fê-lo esticar os lábios numa nesga de sorriso, para rapidamente voltar ao estado estagnado de encolhida tristeza.
Nunca almejara tal.
- As letras nunca foram para mim. Mandaram me trabalhar muito cedo, sabes? Eram outros tempos...
Esticou o olhar e planou por alguns segundos sobre o seu domínio. Tudo o que tinha. Uns míseros metros quadrados de verdura comestível, salpicado de pequenos animais, igualmente comestíveis, que por ali se banqueteavam. Também eles indoutos do seu destino.
A suave e pequena mãozinha, estacionou sem licença, na côncava carapaça de dedos.
- Avô, ensinas-me?
Olhou o do alto da sua antiguidade. Aquilo era tudo o que tinha. Mas isto era a sua riqueza.
A felicidade rasgou a custo por entre as rugas das privações, deu brilho ao olhar baço, e instalou-se no alargado sorriso.
Não fora doutor. Mas seria mestre.